Capitalização da Eletrobras cria oportunidades e enseja reflexões

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Projeto poderá permitir a empresa expandir sua atuação na América do Sul com exportação de serviços

 

O projeto de capitalização da Eletrobras, previsto para ser realizado em fevereiro, está em dia com seu cronograma, poderá auxiliar na ampliação de investimentos no setor e permitir que a estatal federal possa aplicar recursos na América do Sul em países em que seu conhecimento sobre fontes renováveis, como hidrelétricas, é um trunfo. No entanto, o processo enseja reflexões sobre riscos de concentração de mercado, aspectos regulatórios e reforça a necessidade de uma legislação que apoie a modernização do setor elétrico diante do contexto de transição energética. Esses foram os principais pontos discutidos no terceiro episódio da websérie sobre transição energética e o desenvolvimento sustentável no Brasil realizada pela Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), desta vez com o tema “O papel da nova Eletrobras na expansão do setor elétrico e as obrigações do novo controlador”. O quarto episódio será realizado em 21 de outubro e discutirá a geração de energia elétrica no país.

“A Eletrobras caminha para celebrar seus 60 anos de história como companhia privada, caso o cronograma do governo seja bem-sucedido. O desafio é a conclusão dos estudos e formatação do processo de desestatização, pelo qual será realizado um aumento de capital que diluirá a participação da União. Não é pouca coisa. Em geração, a empresa detém 30% da capacidade do país, com cerca de 95% de eletricidade produzida por fontes renováveis. Em transmissão, responde por mais de 40% do total de linhas de transmissão”, destacou o presidente da Abdib, Venilton Tadini.

“O projeto está 100% em linha com nosso cronograma, ou seja, para que ele seja realizado no primeiro bimestre de 2022”, destacou Diogo Mac Cord, secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados no Ministério da Economia. Já foi realizada reunião do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) sobre o tema e o envolvimento do Tribunal de Contas da União (TCU) vem ocorrendo desde o início do projeto. “No que depende da gente, estamos fazendo tudo dentro do prazo, estamos trabalhando nas cisões da Eletronuclear e de Itaipu. Iremos esperar a avaliação e o acórdão do TCU, isso não depende da gente, mas eles estão envolvidos na operação desde o início”, disse o secretário.

Na avaliação do governo, a Eletrobras tem perdido participação no mercado. Em 1990 detinha 57% da geração do país. Já em transmissão de energia, o market share era de 65% em 2003. “Há ainda muito potencial no Brasil com as fontes renováveis, a empresa tem perdido participação aqui e há um potencial enorme na América do Sul. A empresa tem um corpo técnico muito qualificado. O potencial hidráulico existente no Brasil é de usinas a fio d´água, na Região Amazônica, mas esse know-how da Eletrobras poderá permitir que a empresa avance em mercados no exterior, por exemplo, o Peru, cujo potencial hidrelétrico é muito grande”, afirmou Mac Cord.

“Isso permitiria exportação de serviços para o setor de infraestrutura”, observou Maria João Rolim, Sócia Institucional da Rolim, Viotti, Goulart, Cardoso Advogados, moderadora do seminário.

Para Mac Cord, o projeto de capitalização não apenas permite fortalecer a estrutura de capital da empresa e ampliar investimentos em fontes renováveis, mas também melhorar sua governança corporativa com a diluição da participação majoritária da União em uma empresa com capital pulverizado. “Fala-se muito em pauta ESG, a questão da governança é muito importante nessa discussão. A Eletrobras foi usada em leilões de transmissão para investir em linhas com taxas de retorno patrióticas, depois na MP 579 passou a influenciar preços e distorcer, isso cria problemas no setor e reduz concorrência”, disse. Em janeiro de 2012, entrou em vigor, a Lei 12.783 (resultado da MP 579), que tratou da renovação de contratos de geração e transmissão que expiravam entre 2013 e 2015. Grande parte se referia a contratos da Eletrobras e empresas cujo acionista controlador são governos estaduais, como o de São Paulo, Minas Gerais e Paraná. Na legislação, Cesp, Cemig e Copel não aderiram às regras, por alegarem que a remuneração é insuficiente para cobrir as despesas com seus empreendimentos.

 

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Há riscos no processo, dizem especialistas

Andre Flavio, Associate Partner da EY, afirmou que a capitalização irá reduzir a presença do Estado na empresa e no setor elétrico e que a decisão afeta estratégias e a eficiência corporativa com a adoção de um colegiado que irá discutir e definir o que a empresa irá fazer. “Isso é um modelo que traz desafios”, disse. O advogado Rodrigo Machado, Sócio de Energia do Madrona Advogados, destacou que há riscos presentes no projeto. “É uma primeira experiência com um caso emblemático, por causa da dificuldade de desmembramento da empresa, se buscou esse caminho e não uma venda do controle. É um processo sui generis. A competição terá de ser clara, terá de ser com preços de mercado. E essa transição para a nova Eletrobras também será acompanhada de perto”, analisou o executivo.

Um risco é de concentração de mercado em razão de a Eletrobras ser a maior empresa em geração e transmissão no país. “Isso traz a preocupação de como vai ser endereçada essa questão, como será a modelagem. Estatal ela pode criar distorções, como empresa de capital pulverizado ela não o fará? Ela não poderá usar poder para influenciar preços? Isso exigirá um trabalho do órgão de defesa da concorrência e da Agência Nacional de Energia Elétrica, que não está muito envolvida historicamente nesse tema, ao contrário da Agência Nacional de Telecomunicações. O Cade e a Aneel poderiam participar agora dessa discussão de uma empresa que poderá ter influência relevante sobre o setor elétrico”, observou.

Para Diogo Mac Cord, secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados no Ministério da Economia, não há risco dessa concentração. Ele citou que o setor hoje tem a presença de diversos agentes internacionais com escala global e presença relevante no mercado brasileiro de energia elétrica. “Não vejo esse risco, a Eletrobras será uma tomadora de preços e não uma fazedora de cotações”, disse.

Para o advogado Rodrigo Machado, há outros pontos de riscos no processo. Ele apontou que existem algumas Ações Diretas de Inconstitucionalidade tramitando sobre a questão, mas elas não deverão ser julgadas até a conclusão prevista do projeto de capitalização. “Mas a maioria das ações se refere a ‘jabutis’ incluídos na discussão no Legislativo e não acredito que haja interferência sobre o processo, mas de qualquer forma é um risco”, destacou. Outro risco presente são os empréstimos compulsórios, um tema que se arrasta há décadas. “Hoje ele está precificado com uma empresa controlada pela União, mas isso muda quando a empresa passa a ter capital pulverizado, tem impacto sobre a precificação.”

O empréstimo compulsório foi instituído na década de 1970 com o objetivo de expandir e melhorar o setor elétrico brasileiro. Foi cobrado e recolhido dos consumidores industriais com consumo mensal igual ou superior a 2.000 kwh, através das “contas de luz” emitidas pelas empresas distribuidoras de energia elétrica. O valor anual destas contribuições, a partir de 1977, passou a constituir crédito escritural, nominal e intransferível em favor do contribuinte.  No início da década de 1980 o governo prorrogou o prazo de vigência do Empréstimo Compulsório até o fim de 1993. A legislação fixou um prazo máximo de 20 anos para devolução do empréstimo compulsório aos seus contribuintes, mas facultou à Eletrobras a possibilidade de antecipação dessa devolução, através de conversão acionária dos créditos – ou seja, transformar os créditos escriturais em ações e entregar estas ações aos respectivos titulares. Em 2009, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que a empresa deveria corrigir os créditos. Na ocasião, boa parte do compulsório já havia sido pago pela empresa por meio da conversão dos valores em ações. Em 2005, havia sido realizada a última assembleia da empresa para discutir a restituição dos créditos e a conversão de valores em ações. A discussão ainda está na Justiça.

A discussão da capitalização da Eletrobras coincide com o debate sobre a modernização do setor de energia elétrica. O governo federal enxerga o processo como um passo no aprimoramento do segmento, com mais competição e preços mais baixos.  “O modelo de colegiado a ser adotado pode trazer novas formas para o setor elétrico em que se discutem novas tecnologias e como elas terão de ser precificadas”, disse Andre Flavio, associate partner da EY. Ele exemplificou que, com o avanço de fontes intermitentes como eólicas e solares, cresce a importância das usinas hidrelétricas como regularização do balanço energético. Os reservatórios das hidrelétricas passam a ter também papel de armazenamento, como serviço ancilar, o que precisa ser precificado no modelo.

Para Rodrigo Machado, sócio do escritório Madrona Advogados, o projeto de capitalização da Eletrobras avança em um momento em que o Projeto de Lei 414/2021 começa a ganhar tração no Poder Legislativo. O deputado Fernando Coelho Filho (DEM-PE), ex-ministro de Minas e Energia, assumiu a relatoria do projeto no início de outubro. O PL traz a separação entre lastro e energia e prevê: 1) abertura gradual do mercado permitindo que os consumidores escolham o seu fornecedor de energia; 2) adoção de uma tarifa que segregue o custo da energia (insumo) do serviço de infraestrutura de redes (tarifa multiparte ou binômia); 3) viabilização de um rateio equânime dos custos associados à provisão de lastro entre todos os consumidores, com a separação de lastro e energia. “O texto surgiu da Consulta Pública 33, lançada em 2017, mas com a crise hídrica surgem pontos que precisariam ser atualizados e incorporados, por exemplo, os serviços ancilares e armazenamento, hoje não dá para ter retorno com eles na legislação atual”, apontou o advogado.

 

“Jabutis” trazem receios

A decisão de capitalizar a Eletrobras foi aprovada no Senado Federal em junho, mas na discussão foram incluídos “jabutis”, que no jargão do Congresso Nacional são trechos sem relação com o objetivo original da proposta. Um deles é a exigência da contratação de usinas termelétricas movidas a gás natural para fornecimento de 8.000 MW de energia por 15 anos. Os parlamentares também determinaram que as usinas estejam instaladas nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste, principalmente em localidades que não possuem infraestrutura de transporte de gás natural. Essa infraestrutura terá de ser construída, o que elevará os custos para os consumidores de energia. Além disso, a energia elétrica produzida pelas usinas termelétricas é mais cara e poluente se comparada às usinas hidrelétricas, eólicas e solares.

O secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia, Diogo Mac Cord, afirmou que a condição de preço-teto colocada na legislação que autoriza capitalização da Eletrobras pode afetar a implantação de parte dos 8.000 MW de térmicas a gás exigidos pela própria lei. “Eu acho que, no fim das contas, foi um tiro no pé, porque talvez parte dessas térmicas sejam inviáveis, porque uma condição que foi colocada lá foi o preço-teto. Se o preço-teto for suficiente para cobrir toda a infraestrutura, ótimo. Se ele não for, não tem”, afirmou Mac Cord.

A questão da entrada dessas térmicas ganhou outro ingrediente. No relatório do deputado Adolfo Viana (PSDB-BA) na Medida Provisória 1.055/2021, que trata da criação da CREG (Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética), um “jabuti” aponta que a Aneel poderá agregar às tarifas de transmissão os custos relacionados a gasodutos associados a termelétricas que venham a ser contratadas em leilão de reserva de capacidade. “A energia mais cara de todas é aquela que não existe. Por isso, a gente tem que colocar fontes de potência. Agora, dentro de uma razoabilidade. Por isso, a gente lutou tão contra esses gasodutos malucos que tentaram incluir na época do GSF [risco hidrológico], foram vencidos; depois veio o novo marco do gás, foram vencidos; depois veio a MP da Eletrobras, foram vencidos; e agora não tenho dúvida que a gente vai conseguir vencer de novo”, disse o secretário.

Ele reforçou que a implantação dos gasodutos deve ter sinais corretos de demanda. “A gente não pode admitir de forma nenhuma esses gasodutos a preços infinitos. Porque quando alguma coisa é grátis, ela tende ao infinito, todo mundo vai querer. Esse é inclusive um dos grandes problemas que a gente tem no sistema de transmissão de energia elétrica no Brasil, por isso que a gente defende há muito tempo um sinal locacional que seja efetivamente inteligente e suficiente para que você tenha o incentivo correto, para que a fonte de potência esteja próxima à carga”, disse. Segundo ele, os gasodutos não podem ter como fim uma térmica, mas têm de ser pensados para obter outras receitas acessórias. “No setor de mobilidade, se olha receita tarifária e não tarifária e no Brasil a não tarifária responde por menos de 5%. Isso é muito baixo. No gasoduto, por que só olhar a térmica? Não se pode olhar clientes livres, não se pode olhar outros produtos, não se pode ver o desenvolvimento regional amplo?”

 

WEBSÉRIE TRANSIÇÃO ENERGÉTICA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

 

Episódio 1 – Modernização do setor elétrico, os seus impactos ambientais e produtividade

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Episódio 2 – Os desafios da escassez hídrica para o setor de energia elétrica

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