Crise hídrica impõe reflexão sobre medidas estruturais do setor elétrico

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Cresce necessidade de discussões sobre planejamento, modernização do arcabouço regulatório e estrutura tarifária frente a um cenário que combina transição energética, novas tecnologias e impacto das mudanças climáticas

 

A crise hídrica e os seus reflexos sobre o setor elétrico impõem medidas emergenciais de curto prazo, mas exigem que reflexões sobre medidas estruturais para evitar repetições, além de discussões sobre o planejamento futuro, a modernização do arcabouço regulatório e estrutura tarifária frente a um cenário que combina transição energética, novas tecnologias e impacto das mudanças climáticas.

Esses foram alguns dos temas discutidos no segundo episódio da websérie sobre transição energética e o desenvolvimento sustentável no Brasil realizada pela Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), com o tema “Os desafios da escassez hídrica para o setor de energia elétrica”. A websérie contará com sete episódios que visam debater sobre transição energética, tema que vai além de alternativas sustentáveis, fontes renováveis, uso de tecnologia e modernização de sistemas. O próximo episódio discutirá o projeto de capitalização da Eletrobras e o papel da holding no setor elétrico a partir da nova estrutura societária.

A situação atual cria preocupação sobre o desdobramento da crise e seu impacto sobre crescimento da economia e sobre os preços, afirmou Venilton Tadini, presidente-executivo da Abdib. “Foi criada uma Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética, a CREG, foram reduzidas as vazões de alguns reservatórios, lançadas campanhas de conscientização, enquanto o Ministério publicou normas para grandes consumidores deslocarem a produção fora do horário de ponta. Mais recentemente começou a vigorar um programa para reduzir o consumo no mercado regulado. Mas ainda existem receios no mercado sobre o engajamento dos consumidores em um momento em que a produção está retomando. É preciso ter comunicação eficiente para atingir os consumidores regulados espalhados pelo Brasil”, afirmou o empresário.

Para Gustavo Estrella, CEO da CPFL Energia, as medidas adotadas pelo governo no curto prazo para mitigar os efeitos da crise, como importação de energia elétrica e incentivo para autoprodutores gerarem mais e poderem disponibilizar à rede, são paliativas, mas necessárias. “O incentivo à racionalização também é, para que possamos atravessar esse período de quatro a cinco meses de risco em que podemos ter problemas em atender à ponta. Por causa de efeitos da temperatura podemos ter picos de consumo, o que pode criar dificuldade no atendimento.”

Para Estrella, a crise envolve todos os elos da cadeia – dos consumidores livres e regulados a geradores, comercializadores e distribuidoras. Por isso, é essencial que transparência e comunicação sejam aliadas para superar esse momento. O executivo ressaltou que o Operador Nacional do Sistema (ONS) terá um papel primordial na operação do sistema nesses próximos meses quando o nível dos reservatórios deverá cair.

O CEO da CPFL Energia disse que a crise atual enseja reflexões e que uma prioridade deve ser evitar que o curto prazo contamine a estabilidade regulatória, obtida desde 2004, quando foi sancionado o novo marco regulatório do setor. “É preciso olhar o curto prazo, mas preservar as condições no longo prazo com o respeito aos contratos. Há investimentos que não foram completamente amortizados e as empresas tiveram de se adaptar a um cenário da pandemia”, afirmou.

Para o presidente da Enel Distribuição São Paulo, Max Xavier Lins, o momento atual é crítico e faz recordar o racionamento de energia elétrica, implementado de junho de 2001 a fevereiro de 2002, que teve repercussões sociais, econômicas e políticas. “Se tivermos de passar de novo, que façamos da melhor forma possível, mitigando riscos. As distribuidoras são o elo mais visível com a sociedade, elas podem orientar e esclarecer. Mas só se pode comunicar com antecedência. É preciso estabelecermos um planejamento estruturado e racional de como atacar a questão no curto prazo e também temos uma lição de casa para resolver questões estruturais para os próximos anos”, destacou.

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Eventos climáticos estão mais constantes

Nos últimos dez anos, os extremos climáticos têm sido mais sentidos na gestão hídrica, sendo que a estiagem tem sido mais recorrente em muitas regiões do país, segundo Christianne Dias, diretora-presidente da Agência Nacional das Águas e Saneamento Básico (ANA). “As discussões estão mais frequentes porque a água é um bem limitado. De 2020 até esse ano, temos tido mais de 150 reuniões nas salas de crise criadas para debater o tema com múltiplos atores”, observou.

Para ela, a criação da Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (CREG) trouxe um olhar mais abrangente sobre a crise para avaliar medidas excepcionais e para discutir o seu impacto sobre a sociedade. “Assim, é possível tomar medidas para enfrentar a crise”, disse. Questionada se, passada a crise, não seria preciso ter um fórum para manter e obter alinhamento nas discussões sobre o uso múltiplo das águas entre diversos atores do governo federal, Christianne Dias disse achar que não. “Temos já diversos fóruns e temos reuniões quase diárias com o ONS. Não acho que precise de um fórum definitivo porque a interação já ocorre”, afirmou a diretora-presidente da ANA.

A crise hídrica não afeta apenas o Brasil. Na Califórnia e no Chile, também tem trazido problemas e exigido medidas dos governos locais, afirmou Cristiano Vieira, secretário de Energia do Ministério de Minas e Energia. Ele destacou que a transição mais lenta do período seco para o úmido foi percebida em setembro do ano passado e a partir de outubro houve um acionamento mais intenso de usinas termelétricas e importação de energia elétrica de países vizinhos. Em dezembro de 2020, iniciou-se uma campanha de uso consciente da energia elétrica. “Não existe bola de cristal, não se sabia como seriam as chuvas nesse verão, por isso se manteve as térmicas operando. Assim como a transição para o período úmido foi mais tardia, as chuvas se interromperam antes, em março, com um volume muito aquém do previsto.”

 

Crise hídrica exigiu medidas adicionais

Nesse quadro em que as chuvas caíram muito e os reservatórios poderiam ter queda acentuada nesse período seco, foi necessário adotar medidas adicionais, o que levou à criação da CREG. “As decisões dela são transparentes e são comunicadas com frequência”, disse o secretário, que destacou que o governo está atuando também no aumento da oferta. Em setembro, entrou em operação a usina termelétrica GNA I, no Rio de Janeiro, com 1.300 MW de capacidade, movida a gás natural. Linhas de transmissão também foram antecipadas, ampliando a capacidade de transferência entre as regiões Nordeste e Sudeste. “Estamos vendo acréscimo de importação também de gás da Bolívia e da Argentina para abastecer as termelétricas e a possibilidade de mais energia elétrica da Argentina e do Uruguai.”

Em relação a medidas estruturais, o secretário observou que os blocos hidrelétricos podem não ter o tamanho estimado, seja porque o volume de água armazenada seja menor ou por restrições no uso múltiplo de águas, um ponto que tem de ser observado. “Também precisamos ver se a tendência é de menos chuva ou esse é apenas um ciclo semelhante ao visto no início da década de 1950, que durou sete anos”, analisou. Para ele, o modelo atual tem de ser ajustado a uma realidade mais crítica com uma alocação mais isonômica dos custos, diversificação das fontes e segurança de abastecimento.

Diretor de Planejamento do ONS, Alexandre Nunes Zucarato disse que a situação se agravou entre o fim do ano passado e o início de 2021, com chuvas abaixo da estimativa, o que cria desafios para a operação, que tem de manter o sistema diante de algumas restrições. “O ONS tem buscado mais flexibilização, o desafio é ter um balanço energético ótimo com a máxima segurança”, observou. A situação atual tem levado à redução de vazão em alguns reservatórios de hidrelétricas com objetivo de poupar água. “A que nível? Dependerá da gravidade da situação”, disse.  Os reservatórios da região Sudeste estão hoje em 18,3% e podem cair mais no próximo mês. “    A recuperação dos reservatórios é um ponto a ser observado, não será em um período úmido que eles irão se recuperar.”

Para Gentil de Sá, superintendente de Fiscalização dos Serviços de Geração da Aneel, a crise atual exige que a atuação da agência reguladora federal seja pautada pela transparência e previsibilidade. O contexto exigirá reflexões sobre alguns pontos. Um é o despacho térmico intenso, que deve permanecer até o fim do período úmido para permitir que os reservatórios possam recuperar seu volume para o verão de 2022/2023.

Outro ponto é a recente determinação da CREG de flexibilizar critérios de segurança usados normalmente na operação do setor elétrico. Na tentativa de poupar água dos reservatórios, duas grandes redes de transmissão que fazem o escoamento de energia dos subsistemas Norte e Nordeste para o Sudeste/Centro-Oeste deixaram de adotar a exigência de dupla contingência contra falhas ou interrupções. Isso permite aumentar o escoamento de energia elétrica entre o Norte e Nordeste para o Sul e Sudeste. Como regra, o ONS costuma adotar o critério de confiabilidade N-2 nos principais troncos de transmissão do sistema, ou seja, de dupla redundância contra a perda de um linhão ou uma subestação. Agora em alguns trechos adota-se N-1, menos uma redundância. A prática é geralmente usada em momentos de estresse no sistema, quando os reservatórios estão em baixa.  “Temos de estar mais preparados para essa situação mais estressante”, destacou o superintendente da Aneel.

 

Crise demandará melhorias no planejamento e regulação

Estrella, CEO da CPFL Energia, ressaltou que a crise atual ocorre em um cenário distinto daquele vivenciado em 2001, quando o país teve de cortar em média o consumo em 20%. A matriz mudou em duas décadas: as hidrelétricas respondem por 63,5% da geração de energia, enquanto eólicas e solares hoje respondem por quase 12% (em 2001, não respondiam nem por 1%) e as térmicas atualmente geram energia correspondente a cerca de 20% da demanda. Hoje cerca de 20% da energia do Sudeste está sendo suprida por usinas eólicas instaladas no Nordeste. As eólicas no Nordeste conseguem gerar com um índice de eficiência que em alguns momentos chega a 60%, dobro da média internacional. “A capacidade de geração e de transmissão dobrou, houve uma diversificação da matriz, fruto do que a crise de 2001 criou”, apontou o executivo.

O Plano Decenal 2030 indica a necessidade de expandir a matriz de geração em 15 GW de térmicas, sendo que 4,7 GW já estariam contratados. Já a geração distribuída solar pode chegar a 5% da carga em 2030. O país contará com mais energia renovável e com uma melhoria do parque térmico, com a saída de 3 GW até 2028 de usinas movidas a óleo diesel.  “No planejamento, um desafio será que teremos nessa década a expansão de eólicas e solares, isso cria maior complexidade na operação do sistema, com maior intermitência. A dinâmica do consumo mudou, a geração distribuída cresce e se torna mais importante. São variáveis que têm de ser observadas”, disse Estrella. Para ele, um ponto em destaque é o Projeto de Lei 414, que trata da modernização do setor elétrico. “O projeto vem endereçar várias questões e mudanças, como a potencial ampliação do mercado livre, que deve continuar. Hoje ele responde por 30% do mercado.”

O Projeto de Lei 414/2021, que está na Câmara dos Deputados há mais de dois meses, traz ainda a separação entre lastro e energia e prevê: 1) abertura gradual do mercado permitindo que os consumidores escolham o seu fornecedor de energia; 2) a adoção de uma tarifa que segregue o custo da energia (insumo) do serviço de infraestrutura de redes (tarifa multiparte ou binômia); 3) a viabilização de um rateio equânime dos custos associados à provisão de lastro entre todos os consumidores, com a separação de lastro e energia.

Estrella apontou que o planejamento tem de levar em conta esse ambiente mais livre e decisões recentes. A lei 14.120, sancionada em março de 2021, promulga o fim dos atuais subsídios na Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão e Distribuição (TUST/TUSD) para os novos empreendimentos de geração que obtenham outorga a partir de março de 2022, com exceção das PCHs, que garantiram cinco anos adicionais. Isso provocou uma corrida de investidores para buscarem outorgas de projetos na Aneel. Cerca de 30 GW de outorgas foram concedidas de projetos renováveis que poderiam entrar em 2026. “Hoje falamos em escassez, mas em 2026 teremos sobreoferta de energia? Temos de ter um planejamento que busque o maior equilíbrio possível com harmonia entre os agentes.” Há também um trabalho que é debater a estrutura tarifária, que já é alta e tende a encarecer. “Precisa ver encargo, subsídio, tributo e a discussão da geração distribuída solar, que por um período será paga por quem não tem o sistema. Até que ponto isso é válido?”

O presidente da Enel Distribuição São Paulo, Max Xavier Lins, disse que a Nota 093 publicada pelo ONS em agosto de 2021 mostra a situação difícil. “O limite deve ser atingido em novembro com condições difíceis de operação, o efeito colateral é que crise afetará a eletricidade com modulação e frequência”, ressaltou. “A situação exige que se despache até energia de dínamo de bicicleta, mas haverá repercussão no preço. A população perdeu renda e emprego, a inadimplência pode ter impacto”, disse.

Além de atuar no curto prazo na mitigação dos riscos, é importante não perder as medidas para o futuro, preparando o setor elétrico para novas tecnologias como geração distribuída, armazenamento e redes inteligentes, entre outras. “Precisamos usar essas tecnologias a nosso favor. Em algum momento superaremos a crise e precisaremos revisitar o marco. Há tarifa horosazonal para a alta tensão, mas não existe para a baixa tensão. A tarifa branca não vingou. A precificação da geração também precisa ser reanalisada, com um olhar binômio de incentivo pelo preço.”

A Enel SP, que atende a maior região metropolitana da América Latina, já instalou 89 mil medidores inteligentes nos bairros de Perus e Pirituba, Zona Oeste da capital paulista. Os equipamentos fazem parte da primeira fase do projeto-piloto que irá instalar 150 mil medidores inteligentes na região até março do próximo ano de um total de 300 mil dispositivos do projeto. “O medidor empodera o consumidor, ao permitir que ele possa modular seu consumo. Na área de telefonia, se aprendeu a usar o chip e conhecer o horário em que ele pode ser usado, em energia não é diferente”, afirmou. “É preciso acelerar medidas estruturais para que estejamos mais fortes para quando a escassez tiver sido superada.”

Em relação ao programa de Redução Voluntária da Demanda, voltado para a indústria, o secretário Cristiano Vieira disse que quer um engajamento maior dos grandes consumidores e que eles podem participar com mais vigor da iniciativa. As primeiras ofertas para esse mês apontam que a indústria se comprometeu a reduzir sua demanda no horário de ponta em 237 megawatts-médios (MWm) por hora, entre a tarde e início da noite. Para aderir ao programa, os grandes consumidores de energia têm de ofertar, pelo menos, uma economia de 5 megawatt (MW) hora, em lotes com duração de 4 a 7 horas.

Diretor de Planejamento do ONS, Alexandre Nunes Zucarato disse que as ofertas de energia feitas pelas indústrias em setembro são para iniciar o processo do programa voluntário de resposta da demanda e um aprendizado para que se ganhe mais corpo para mais ofertas a partir de outubro e novembro, quando o cenário de operação do sistema se tornará mais desafiador.